Era final de tarde quando me deparei com aquele homem pela primeira vez. Ele devia ter por volta de uns 60 anos. O cabelo rastafari comprido até a cintura já estava quase todo branco além de um aspecto sujo de quem não os lavava há anos. Um blusão de crochê cinza com alguns rasgões que mostravam uma camisa comum por baixo, também já velha. Os dentes escuros, amarelados e com aparência de sujos também. A ponta dos dedos preta com unhas encardidas e mão enrugada.
Eu o enquadraria como mendigo se ele não estivesse trabalhando na porta de um supermercado naquela pequena cidade turística. Ele vendia livros. Aquele senhor sujo e de má aparência vendia livros. Não seria nada surpreendente se eu não parasse para ouví-lo falar de sua mercadoria.
Não me recordo com exatidão as palavras que ele usava mas me lembro da intensidade com a qual ele falou do ''Clarice,'' (lê-se Clarice vírgula), parecendo conhecer toda a biografia da escritora que ao meu ver é uma das mais fantásticas e profundas que já li. Ele falou do 'Livreiro de Cabul' que é um dos meus maiores desejos literários ainda não realizados. Falou sobre o livro de um autor americano cujo título desconheço.
Confesso que apesar de ter me surpreendido com tamanho conhecimento literário não me dei por satisfeita. Ele tinha comentado sobre livros que não li, poderia estar me embromando. Resolvi então questioná-lo sobre livros que eu já tinha lido como se nunca os tivesse visto... queria descobrir a verdade.
Perguntei sobre 'A moreninha", 'O primo Basílio', 'Cidade do Sol', 'A menina que roubava livros'... ufaaaaaaaaaaaaaaa... ele parecia ter lido tudo. Ele não apenas sabia que A moreninha era apaixonada pelo Augusto e que se envolveram na medida em que ela tentava lhe ensinar costura. Sabia também que o primo Basílio foi que fizera Luíza trair seu fiel esposo. Sabia que em 'Cidade do Sol' a cultura Afegã era relatada em detalhes, inclusive regras do alcorão para as mulheres e lembrava que a menina que roubava livros tinha a sua história narrada ironicamente pela morte. Conhecia os personagens e todo o enredo, sabia o estilo literário e a origem do autor. Ele sabia os detalhes do perfil dos personagens, do tempo em que se passou e da época em que fora escrito.
Aquele homem estranho era um leitor compulsivo. Digo isso não apenas pelo seu discurso para vender os produtos mas, posso fazer tal afirmação com exatidão por te-lo visto dois dias depois sentado na porta do mesmo mercado, lendo um livro de título em inglês, entretido em sua leitura, concentrado a ponto de não notar quem passava ali. Parecia até mesmo que o cigarro que ele tinha não mãos iria lhe queimar os dedos devido a excessiva concentração literária.
Talvez ele tenha me enganado e tudo não passe de um discurso decorado para impressionar os turistas do local... mas seja lá o que for, de qualquer modo, é preciso ter muita disposição e inteligência... tanto para ler quanto para fingir... mas eu opto pela primeira opção.